Um passeio pela Lisboa Judaica, seguindo "O Último Cabalista de Lisboa" de Richard Zimler (2024)

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Um passeio pela Lisboa Judaica, seguindo "O Último Cabalista de Lisboa" de Richard Zimler (1)

Chove às portas da Igreja de São Domingos. No meio de um grupo de pessoas que empunha guarda-chuvas, está a professora Andreia Salvado, também ela com o seu guarda-chuva aberto, e munida de um mapa um pouco diferente daquele que conhecemos da cidade de Lisboa: é um mapa do século XVI, de uma Lisboa que foi “engolida” pelo terramoto de 1755. De uma Lisboa que era também judaica.

É por essa outra Lisboa, cheia de igrejas, de conventos, e ainda com uma grande área dedicada às hortas e ao campo, que este grupo está prestes a viajar, à procura daquilo que resta de uma comunidade que aqui viveu: a comunidade judaica.

Esta é uma das muitas visitas organizadas pela agência de percursos turísticos Oui GO Lisbon. Neste caso, o objetivo não é só recordar a História dessa Lisboa judaica, mas também as palavras de Richard Zimler no seu livro, O Último Cabalista de Lisboa.

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O livro de Richard Zimler é uma ficção histórica, e por isso tem essa dupla magia: a de contar uma história inventada, sob um pano de fundo real.

Esse pano de fundo é a Lisboa do Massacre de 1506 que devastou a cidade e vitimou milhares de judeus. “No dia do massacre, o tio de Berequias, a personagem principal, é assassinado e ele vai empenhar-se em descobrir quem o assassinou”.

E é pelas ruas de uma Lisboa em verdadeira guerra que Berequias procura deslindar o mistério da morte do cabalista Abraão. E é a sua história, e a da sua família, que são evocadas pelos passos de Andreia.

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Como os judeus se tornaram cristãos-novos

Mas, para se perceber a realidade do jovem Berequias e do seu tio, é preciso alguma contextualização histórica.

Em 1492, os reis de Espanha, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, também conhecidos como “os reis católicos”, promulgam um édito de expulsão dos judeus. Cerca de 100 mil judeus terão fugido para Portugal, e cerca de 30% ter-se-ão instalado na capital.

Anos mais tarde, com a morte de D. João II em 1495, os reis católicos concedem a mão da sua filha, Isabel de Aragão, ao novo rei de Portugal, D. Manuel I. Mas impõem uma condição: D. Manuel terá de expulsar os judeus do reino, tal como eles fizeram.

Surge aqui um problema: é que, por um lado, D. Manuel quer continuar a política expansionista do seu antecessor e por isso o casamento é-lhe favorável de forma a manter-se a paz no reino. Mas, por outro, eram os mercadores judeus quem tinha o poder comercial para se construírem as naus, as caravelas, as frotas…

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“Os judeus não trouxeram apenas dinheiro para Portugal, eram também muito cultos”, ressalva Andreia.

Geógrafos, matemáticos e médicos de origem judaica passavam pela corte real. Alguns eram mesmo conselheiros diretos do rei que, graças aos seus conhecimentos na área da cartografia, faziam os Descobrimentos seguir a sua marcha…

E por isso D. Manuel resolve fazer algo inédito: permite que os judeus fiquem em Portugal se se converterem ao cristianismo. Mais, para impedir a sua saída do reino, o rei interdita a saída dos judeus sem autorização.

Em março de 1497, D. Manuel reúne na cidade de Lisboa cerca de 5 mil judeus que não querem converter-se e promete-lhes navios. Estes judeus são levados para o antigo Palácio dos Estaus, que habitualmente acolhia embaixadores e fidalgos e que é hoje o Teatro Nacional D. Maria II, e o Rossio é cercado por tropas. Entretanto, são dadas ordens aos frades dominicanos para converterem aqueles que estavam no Palácio.

É isso mesmo que acontece a Berequias e à sua família. “O frade aspergia a pessoa de água benta e colocava-se um ferro incandescente na testa, marcando-se a cruz de Cristo na pessoa. O batismo estava feito”, conta Andreia.

E o batismo implicava também a mudança de nome: Berequias passou a ser Pedro.

“No tempo em que andava abatido com a mudança forçada do meu nome de Berequias para Pedro, o meu tio cobriu-me a cabeça com o xale de orações e sussurrou-me: ‘São muitos os nomes de Deus. Assim, também nós, que fomos feitos à sua imagem e semelhança devemos ter muitos nomes. E aquilo que o teu nome encobre não muda nunca’”.

O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler

A Lisboa das Judiarias

O Último Cabalista de Lisboa transporta-nos para o ano de 1506. Judeus já não existem, apenas “cristãos-novos”. Berequias é um jovem cristão-novo a viver na Pequena Judiaria em Alfama que já nem sequer é uma judiaria, embora toda a gente saiba “que ali viviam concentrados os cristãos-novos”, conta Andreia.

Lisboa teve três judiarias: a Judiaria Grande, também conhecida como Pequena Jerusalém, localizada muito perto do Terreiro do Paço, a Judiaria Nova, na Praça do Município, onde se concentravam os Palácios dos Banqueiros, e a Judiaria Pequena, em Alfama.

Encontrar a casa de Berequias não é difícil. Ainda hoje resistem as marcas que delimitam Lisboa, anunciando-se a porta de Alfama, essa porta que daria para a Pequena Judiaria. “Esta judiaria está fora das muralhas, está completamente desprotegida”, diz Andreia.

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Uma judiaria que resistiu à provação dos anos.

Ainda hoje, a Rua da Judiaria conserva a sua toponímia, com um velho edifício amarelo a marcar o lugar onde em tempos ficava a sinagoga. “Esta é uma judiaria pequenina, onde viviam cerca de 500 famílias em prédios estreitos, de madeira, com três andares”, evoca a professora.

“A nossa sinagoga na Judiaria Pequena tinha sido construída no ano cristão de 1374 numa pequena elevação no flanco da parte a sul das muralhas defensivas de Lisboa. No fundo dessa encosta fica um largozinho com uma grande pereira no meio, irmã de uma outra gigantesca que antes cobria de sombra o adro do nosso templo principal da Pequena Jerusalém”.

O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler

Numa pequena casa, ainda sobrevive a escavação de uma mezuzah, uma caixinha com um pergaminho enrolado com uma oração: “Devia ser a casa de uma família cristã-nova que retirou a sua mezuzah quando houve a conversão forçada”. Na cultura judaica, as visitas tocam na mezuzah e pedem proteção para a família que os recebe.

Lá ao fundo, vê-se uma estrela de David, que representa o escudo de Deus, a proteção. Por aí em diante, segue-se até àqueles que seriam os balneários, e, em frente, o Beco dos Curtumes, onde os cristãos-novos trabalhavam para fazer cintos e calçado.

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Mas se os vestígios da Judiaria Pequena ainda são bem visíveis, os da Judiaria Grande já são mais difíceis de encontrar.

É possível desenterrá-los no passado: em 1366, D. Pedro I promulgou um decreto que obrigava a que as judiarias fossem encerradas, construindo-se à volta das suas muralhas igrejas. E é por isso que hoje, para se imaginar esta judiaria, é preciso procurar uma porta e uma igreja.

É diante da Igreja de São Nicolau que Andreia pede que se faça este exercício. “Temos de virar a Igreja de modo a que a porta principal dê para a estrada, e estamos na parte traseira. Tudo o que tenho da Igreja de São Nicolau em diante é a judiaria”.

Esta judiaria estende-se da Igreja de São Nicolau até à Rua da Alfândega, e da Rua dos Fanqueiros até à Rua Augusta. “Têm de pensar à escala da Lisboa de 1506: nesse tempo, a Judiaria ocupa uma área significativa”.

Uma área que abarca balneários, prisões, estalagens, carniçarias, poços e, em tempos, uma sinagoga…

“Centenas de pés mais abaixo, como um protesto contra os meus movimentos, dormia o coração de Lisboa e o maior bairro judeu, conhecido entre nós por Pequena Jerusalém, vinte mil casas que o luar revelava aninhadas pelas faldas das colinas e pelos vales e recolhendo-se numa curva do Tejo.”

O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler

Na Rua dos Fanqueiros, ficaria a sinagoga. Uma sinagoga que deixaria de o ser com a promulgação do édito em Portugal. “Tudo o que dizia respeito à identidade religiosa ou cultural judaica é destruído ou convertido”.

A sinagoga tornava-se, assim, a Igreja da Conceição dos Freires. Uma Igreja que seria depois destruída pelo terramoto, mas resta a memória de três pedras e de uma lápide com a inscrição em aramaico da data da sua construção em 1307.

Perto desta sinagoga, haveria a escola, a livraria e uma biblioteca que fora legada à sinagoga por Guedelha Palaçano, rabi-mor no tempo de D. Afonso V, que teve de sair de Portugal, acusado de participar na conjura contra D. João II. “Era quase uma wikipedia da época”.

A conversão forçada

Com a conversão, os livros judaicos são apreendidos e queimados. “Perdeu-se um tesouro absolutamente extraordinário em termos de conhecimento científico, religioso, literário”. E os judeus, obrigados a converter-se, eram também obrigados a esconder tudo aquilo que fazia parte da sua identidade.

A expressão “não apontes que te podem nascer verrugas nos dedos” terá surgido porque as crianças judias dantes tinham por hábito apontar para as estrelas no céu para celebrar o Shabbat. Já não podiam fazê-lo, era preciso aparentar uma “conversão total”.

As alheiras terão também surgido para que os judeus fingissem comer carne de porco. “O Berequias a certo momento é apanhado numa rua e abrem um saco e veem as alheiras e pensam que são chouriços e pensam ‘ah não, isto é cristão velho, come carne de porco’”.

“Um deles encostou a lâmina curva ao meu pescoço. Na mão segurava pelos cabelos a cabeça decapitada de uma mulher, gotejante de sangue. Não a reconheci.

-És marrano? – perguntou, para saber se eu era um judeu convertido. O seu olho direito de um branco leitoso, esbugalhado, refletia o meu medo com um brilho maldoso.

-Porque desta vez vamos dar cabo de todos os marranos!

O meu coração batia desesperadamente numa prece pela vida. Abanei a cabeça e estendi-lhe a minha sacola. Olha! Passou-a ao seu comparsa barbudo, que espreitando para dentro e farejando-a rosnou “Chouriços!” e devolveu-ma.”

O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler

O Massacre de 1506

Toda esta realidade, violenta, culmina naquele que foi o Massacre de 1506, quando se desenrolam os acontecimentos d’O Último Cabalista de Lisboa.

Era dia 19 de abril de 1506, dia de Páscoa. Berequias chega ao centro da cidade e depara com o terror. “Devia haver uma paz, uma concórdia, mas durante três dias Lisboa foi palco de uma guerra civil”.

A Igreja dos Dominicanos, hoje mais conhecida como Igreja de São Domingos, enchia-se de fiéis, uma multidão que ia da Igreja até ao Rossio, num dia de calor tremendo. Viviam-se tempos de seca, de escassez de alimentos, de inflação de preços. Mas aqui dá-se um milagre: surgia uma luz, um sinal divino, atrás de um crucifixo. Um milagre que acabou em desgraça.

No meio do alvoroço, um cristão-novo terá gritado: “Em vez de lume, Deus devia dar-nos chuva!”. Os frades clamaram heresia e mandaram matar todos os judeus da cidade. Terão sido mortos mais de 2 mil judeus (Damião de Góis e Garcia de Resende falam mesmo em 4 mil).

“Foi na igreja dos Dominicanos. Um crucifixo com um buraco escavado e tapado com um espelho. Os frades puseram por trás uma candeia acesa e começaram a dizer a todos que a luz era um sinal do Nazareno, um milagre. Há cerca de uma hora, um cristão-novo, o alfaiate Jacob Chaveirol […] começou a dizer que era muito melhor que Cristo nos desse chuva em vez de lume! […] E depois mataram-no à pancada. […] Dois padres apelarem aos fiéis para que matassem os judeus. Mataram Isaac, o irmão dele. Fizeram-no em pedaços. A cabeça que está no campanário é a dele”.

“O Rossio abria-se como uma ferida infetada inçada de enxames de pessoas vociferantes. Apinhavam-se em volta de carruagens enfeitadas, giravam pelas arcadas do Hospital de Todo-os-Santos, debruçavam-se em risadas das varandas e dos beirais das janelas. As gaivotas descreviam grandes círculos no céu, soltando gritos agudos (…)”

“Uma pira. Chamas crepitantes. Cavinhas de fogo laranja e verde desenrolando-se em direção do telhado da igreja. No campanário, um frade dominicano com uma grande papada empunhava uma espada com uma cabeça decepada na ponta e exortava a populaça com uma voz irosa:

-Morte aos heréticos! Matai esses judeus do demónio! Que a justiça do Senhor caia sobre eles! Fazei-os pagar pelos crimes contra as crianças cristãs! Fazei-os…”

O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler
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Foram três dias de carnificina, que terminaram com a promulgação de um édito por D. Manuel na Igreja de São Miguel: como compensação, os cristão-novos poderiam sair do reino sem pagar imposto.

Iniciava-se uma diáspora: os judeus seguem para o Império Otomano, para Amesterdão, para Itália, para os países nórdicos. Berequias e a família viajam para Constantinopla. Mas em Lisboa permanecem os vestígios deste passado obscuro, de tudo aquilo que aqui aconteceu.

“El-rei Dom Manuel, o nosso melekh hasid, o nosso bom rei […] mandou prender quarenta dos desordeiros cristãos-velhos escolhidos ao acaso pelo seu real juiz, João de Paiva. Perante uma multidão de vários milhares de pessoas dispostas em bancadas em pleno sol do Rossio, os prisioneiros foram garrotados e queimados […]Quanto aos eclesiásticos da Igreja de São Domingos e do Convento, El-Rei ordenou que os bons dos frades fossem espalhados pelo reino nos fins de maio. Mas que ninguém tema pelos seus corações desfeitos; pelos fins de outubro já eles estavam de volta para os braços das suas barregãs em Lisboa […] Salvo dois deles, devo dizer. Frei João Mouche e Frei Bernaldez, os dois que exortaram a plebe a lançar-se na matança naquela tarde fatídica em frente da Igreja de São Domingos. Presos e levados para Évora, ficaram durante algum tempo por lá a definhar nas masmorras da cidade. Em outubro, quando já poucas pessoas que se lembravam do que tinham feito, foram garrotados e feitos em cinza”.

O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler

Andreia Salvado sabe bem que peso tem a História. “Este foi um massacre que nos deve envergonhar”, muito embora o livro de Zimler não apele a uma “reação”, mas antes a uma “ligação emotiva” com estes acontecimentos. “Importa sobretudo perceber que o caminho para que estas páginas não voltem a ser escritas é o caminho de paz e de diálogo”.

E, por isso mesmo, em março de 2021, assinou-se um protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Associação Hagadá para a criação do Museu Judaico de Lisboa, em Belém, que deverá abrir portas em 2025, e para a construção de um monumento de homenagem no Largo de São Miguel. “É preciso confrontar a História, em vez de lhe virar as costas”, conclui Andreia.

O próximo passeio pela Lisboa Judaica realiza-se dia 12 de fevereiro, pelas 15h. As marcações são feitas pelo: ouigolisbonvisits@gmail.com.

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Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

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